(Até este exato momento, eu nunca tinha pensado em como falar relatability em português. Relacionabilidade? Relatabilidade? Suspeito que ninguém jamais vá descobrir.)
Assistia à segunda temporada de Iron Fist, série horrorosa da Marvel, enquanto preparava a janta e lavava louça. Coloquei o iPad apoiado no peitoril da basculante, diretamente à minha frente; única situação em que eu posso me forçar a assistir a série.
Frequentemente, sou parado na rua por pessoas, centenas delas, que me interrogam se eu sou o mesmo Erick "daquele blog". Respondo que sim, sou eu mesmo; apesar de toda a fama que alcancei com o sucesso explosivo do Manipulação, continuo a mesma pessoa afável, approachable, gente como você, pé no chão.
Como qualquer membro do hoi polloi, sou apenas um sujeito comum, que assiste a séries terríveis enquanto esguicha detergente em panelas.
Na segunda temporada de Iron Fist, Danny Rand perde seus poderes. É um daqueles plots merdaços sobre como seu heroísmo não era definido por suas habilidades sobre-humanas, mas sim por sua índole, correção de caráter e pelo que ele carrega no coração. Terreno batido, esse tipo de história tenta sempre conectar o expectador ao personagem, torná-lo relatable, gente como a gente, mostrando que todos podemos ser heróis, mesmo sem poderes conquistados numa luta contra um dragão numa cidade transdimensional.
É um rito de passagem de todos os heróis -- cada um deles têm sua história de depowering, para destacar seus atributos relacionáveis ao expectador-leitor-consumidor.
No ano do senhor 2018, toda a relação com mídias se reduziu à relatability, porque a existência humana foi reduzida à identidade; identidade que se compreende como a laundry list de atributos que importam para a esquerda: raça + gênero. Ocasionalmente, se inclui religião no bolo, se não forem as religiões mainstream ocidentais, e às vezes classe, embora esta seja mais murky em produções milionárias de TV e cinema.
A redução da experiência humana à identidade tem diversos benefícios. For one, é um gerador de ultraje perfeito, que funciona como um reloginho. A cada novo piece of media, nós podemos contar os segundos até o listicle ou, ainda melhor, vídeo do Youtube, catalogando suas falhas de conformidade com a Ortodoxia. Como acessório, temos ainda os veículos de mídia neutros que precisam gerar conteúdo e buscam palavras-chave de revolta no Twitter para povoar seus artigos.
Outra vantagem é que o identitarismo, ainda, é uma forma cognitivamente simples de ver o mundo; quanto brainpower não se economiza se seu único vetor de interpretação é sua experiência imediata? Se a arte, afinal, não representa sua experiência imediata -- sua identidade -- isso só pode ser sinal de que é lixo, vergonhosa, míope e muito provavelmente não passa no Bechdel Test.
A identidade, forma ascendida do patriotismo, é o real último refúgio dos canalhas.
Quando o xenofeminismo declarava, anos atrás, o direito de falar como ninguém em particular, sem um asqueroso lugar de fala, sua presciência me escapava. Agora, me sinto catolicamente culpado pelo mundo atolado em/encharcado de identidade. Contribuí para esse estado de coisas. Fiz campanha pela importância das identidades (assim mesmo, no plural até).
Como um ex-vegano possuído pelo ódio contra quem já fui, sou a favor da destruição completa da identidade.
Ao perceber o problema com a identidade -- não só sua versão atual (gênero + raça, yadda yadda), mas toda a identidade -- e se sentir tentado a defender sua abolição, imediatamente uma pessoa pequena qualquer vai aparecer, saída de um arbusto, ou de trás de um poste, para colocar o dedo na sua cara, o acusando de ser branco, ou rico, ou qualquer oposto das identidades pré-aprovadas pela burocracia acadêmica.
Pode até ser verdade, mas eu noto que brancos em geral têm se aprazido em se identificar como brancos recentemente, invocando suas identidades históricas falidas pra entrar na sempre importante Guerra Cultural travada no Debate Público. Então foda-se.
Entendo que os roteiristas de Iron Fist não sabiam o que fazer com ele depois do fracasso completo da primeira temporada; dentro dos parâmetros ridículos de sucesso das mídias atuais, Danny Rand só podia ser tornado relatable, approachable. Um bilionário gente como a gente, que esguicha detergente em panelas sujas todos os dias.
Relatability é um câncer -- suga todo o senso de encanto, perplexidade, fascinação, admiração ou surpresa da arte. Instead, ela retorna ao denominador comum mais banal: o que é você?
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