21 de novembro de 2018
I'll take your shitty moral priorities... and eat them
A provisão de que o dono do Death Note precisa conhecer os rostos das vítimas soa como uma concessão forasteira às demais regras estabelecidas no caderno, tentativa que resvala no desespero para evitar plot holes. Death Note, o mangá, é escrito como se seu plot fosse o desenrolar natural de umas peças no tabuleiro; o cenário inicial, do gênio que se apropria do caderno mágico, é um gentil toque que coloca em movimento toda a série de episódios, delimitadas somente pelas regras duras da contracapa do Death Note, o objeto.
Astutamente, como um stand-up comedian levantando as questões que a sociedade cala, noto que são regras delimitadas pela subjetividade humana, pela maleabilidade da memória. E se eu sou ruim com rostos? Too bad, o Death Note é inútil. Pobre coitado do cego que se apossar do Death Note, jamais poderia aproveitar seus miraculosos poderes; mesmo eu, com meus 3 graus de astigmatismo em cada olho, diuturnamente saturados pelas refresh rates de monitores, talvez não fosse capaz de formar uma imagem mental suficiente para ativar minha killing spree. Tivesse o anime sido lançado em 2018, alguns diriam que o caderno é capacitista.
Eu preferiria, porém, que Tsugumi Ohba não tivesse lançado mão desses meios-termos ridículos, provas de sua fraqueza espiritual como escritor. Um caderno que matasse quem tivesse seu nome escrito, não importa quem, essa é uma premissa que eu apoio. Imagine que Light Yagami, ao se apossar do caderno, decida escrever "José Silva" -- assim mesmo, em caracteres romanos mesmo, sem kanji bullshit pra individualizar. Quantos milhões seriam mortos imediatamente? Será que o impacto seria positivo? É uma questão a se ponderar; vai saber. Imagine, até, que o caderno não aceite nomes compostos e mate todos aqueles que têm José e Silva no nome. Estamos entrando em território calamitoso, mas é esse tipo de exploração corajosa que eu espero da minha ficção.
Talvez o dono do caderno decida que heavy casualties são moralmente asquerosas ou, em cálculo utilitário, assuma que causam uma perda social de bem estar muito grande; tudo bem, ele pode selecionar um nome menos popular pra tratorar. Quem sabe "Onyx"? Eu não conheço nenhum Onyx senão aquele cara lá da equipe do Bolsonaro. Quantos Onyxes morreriam? Seu desaparecimento seria positivo? Chuto que sim. Provavelmente eu escreveria "Onyx" sem arrependimento num Death Note sem requerimentos ridículos de memorização facial.
Afinal, o Death Note tem um número limitado de páginas, o que torna premente a maximização do impacto dos poderes do caderno antes que o espaço para os nomes acabe. Nós testemunhamos, ao longo da série, os terríveis crimes contra a formatação das páginas que foram cometidos em nome da inserção de mais nomes. Eu não sou assim; se eu achasse um Death Note, gostaria de mantê-lo pristine, com organização adequada, o mais próximo possível de mint condition.
Alternativamente, o caderno poderia funcionar com stickers dos rostos das futuras vítimas, eliminando a necessidade de nomes. Borbulho com ideias aqui -- tudo em nome da simplificação do ruleset deselegante do caderno.
Through and through, Death Note é uma série extremamente japonesa + selvagemente adolescente, o que explica por que um prodígio como Light, que toma posse de poderes god-like, decide matar ladrões de galinha, assaltantes de loja de conveniência, batedores de carteira. Ele podia ter virado as estruturas de poder de cabeça pra baixo, submetido a ONU, destruído as forças militares do mundo inteiro. Poderia ter entrado na internet e começado a guardar imagens de todas as lideranças políticas e econômicas do planeta para fins de chantagem e para referência imagética em caso de não-atendimento das demandas. No entanto, ele prefere matar criminosos que literalmente apareceram na TV. O Japão sequer tem crime.
Até alguns anos atrás, uma plot contrivance específica da série me incomodava bastante: se passam 4 anos desde a morte do L, mas o conhecimento da necessidade de nome e rosto para os Kira murders aparentemente não se dissemina pelo mundo. Por que a população inteira não passou a usar máscaras, capacetes, bigodes postiços? Ninguém sabe, embora, pra ser sinceraço aqui, isso não mais me perturba tanto. O que não me desce mesmo é o fato de que, adulto feito, o gênio Light continua com a ideologia pobrinha que ele tinha com 17 anos, matando uns criminosos pé rapados que ele viu no Datena.
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