20 de novembro de 2018

Se eu pudesse assessorar Yang Wen-li no debate com Reinhard von Lohengramm, este seria meu argumento



Legend of the Galactic Heroes (Ginga Eiyuu Densetsu, para os familiares), possivelmente o melhor anime já feito baseada numa incrível série de livros que eu não li, retrata um conflito entre duas pólis (póles?) interestelares. O Império é uma coleção de planetas pouco povoados, semifeudais, governados por elites vassalas com sensibilidades germânicas; a Aliança é uma república metropolitana democrática, comparativamente menor em extensão e em número de planetas, mas aparentemente mais densa. Quando passamos a acompanhar a série, o Império tem uma população de cerca de 25 bilhões de pessoas, enquanto a Aliança conta cerca de 15 bilhões de cidadãos.

As quarenta bilhões de cabeças, na verdade, são um agudo declínio desde o apogeu da espécie humana sob o Império, que unificava 120 bilhões de habitantes sob um só estado, espalhados em, presumivelmente, centenas de planetas. Difícil imaginar algo de maior escopo, números tão colossais, distâncias tão abissalmente grandes. LoGH é hard scifi; seu conceit é transplantar conflitos tipicamente terrenos para um plano cósmico. Existe um problema básico com esse approach.

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Statelessness é anátema ao estado-nação moderno. Um estado é limitado apenas, tautologicamente, pelos próprios limites, que são dados por outro estado, que funciona como espelho na fronteira. Não há uma área ajurisdicional, porque essas áreas se tornam automaticamente tributárias ao estado mais próximo (a contiguidade também é muito cara para a aceitação cognitiva do estado moderno).

Se você olhar para um mapa político da Antiguidade, provavelmente vai notar que os estados simplesmente cessam, mesmo sem um limite físico aparente, e sem a força de outro estado para empurrá-lo de volta. Parte disso tem a ver, obviamente, com a geografia física: controle efetivo é necessário para a existência da jurisdição. Se seu reino é tecnologicamente incapaz de cruzar (ou se estiver desinclinado a custear uma jornada para cruzar) as cadeias montanhosas do Cáucaso, é até ali que seu poder político vai.

E o poder político periférico simplesmente breaks down. Um líder político só consegue permanecer no topo através de uma partilha efetiva do poder e dos espólios; e a unidade estatal permanece enquanto houver um sistema de vassalagem vantajoso. Próximo aos centros de poder, esse arranjo normalmente permanece, mas quanto mais um estado se expande, mais se torna óbvio para os vassalos distantes que eles não precisam compartilhar nenhum poder, nenhum espólio com a metrópole. Se os romanos enfatizavam a construção de estradas para facilitar o acesso da metrópole às colônias, era porque reconheciam esse fato fundamental.

Percebo que a grande vitória do estado moderno tenha sido estabelecer sistemas duradouros de partilha de poder, evitando a trituração dos estados em milhares de polities.

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Um mapa político moderno é propaganda, porque não estipula os limites reais do estado; ele aceita claims de jurisdição westphalianos que são prima facie falsos. Se o estado brasileiro alega ter jurisdição sobre toda a área do Rio de Janeiro, essa é uma óbvia mentira. O Rio de Janeiro é particionado entre os níveis oficiais do estado (governos municipal, estadual, federal) e forças informais (notoriamente os vários grupos de traficantes e as milícias). Ocasionalmente o estado tenta invadir os territórios de forças concorrentes, mas geralmente falha por uma combinação de problemas tecnológicos, culturais e geográficos. Como um oceano ou uma cordilheira são um limite físico duro ao poder estatal, um settlement numa montanha de pedra no meio da cidade também é.

James C. Scott, que eu mencionei ali embaixo noutro post, talvez se sentisse à vontade para observar que o estado brasileiro só se afirma no asfalto -- nas áreas planas. As áreas planas são as áreas de legibilidade; suas vias se dispõem da forma que o estado compreende. Sua produção econômica é grande o suficiente e visível o bastante para ser acessível ao estado. A vida da favela não segue o fluxo racional da burocracia.

Ou seja, no Rio de Janeiro, como no Brasil de forma geral, o estado moderno falhou porque seus mecanismos de vassalagem falharam. A centralização política não foi capaz de partilhar um poder de forma a manter a unidade.

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O que me joga de volta ao começo: dois monolitos estatais interestelares desafiam a suspensão de descrença. Mesmo com faster than light travel, os mecanismos de controle político se quebram naturalmente. Em estados compostos por dezenas de planetas povoados, a simples distância, o mero drift cultural pulveriza o controle político. No começo de LoGH, ocorre inclusive uma rebelião dentro do Império: uma das colônias tenta declarar independência, mas é rapidamente subjugada. Claro, o governo central certamente é mais forte que uma simples colônia, mas no mundo real não é essa a questão que se coloca. Ninguém nega que o governo brasileiro seja mais forte militarmente que gangues de traficantes, and yet elas mantêm o controle de grandes nacos do Rio.

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LoGH, de forma interessante, quaint, traz uma visão clássica do que significa a guerra: uma briga irrelevante entre elites. Ao longo da série, o povo, principalmente no Império, se mostra apático a quem toma o poder. Mesmo a população na Aliança, mais tarde, pouco reage a uma mudança de governo. De fato, com 15 bilhões de habitantes, one wonders qual a representatividade possível de um sistema político unificado nessa escala.

E se o estado não se pulveriza é porque, no longínquo futuro, a humanidade pode ter adquirido nível suficiente de esclarecimento para perceber que o governo, francamente, não importa.

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