Dr. Oscar Söderström observava atentamente sua prancheta, envolta cuidadosamente por seu braço esquerdo. Como um metrônomo, tocava a ponta de sua caneta na superfície do papel, ritmado, sem uma palavra ser escrita. Toc-toc-toc que enlouquecia a figura lânguida de Joaquim Silvério da Silva e Silva, que encarava a cena com uma testa rugosa & reluzente, de poucos cabelos restantes e quase tão pouca roupa cobrindo, sim, suas vergonhas.
Naquela manhã quente, Joaquim já contava duas?, três?, possivelmente três horas e meia em que estavam ele e mais duas dúzias de descamisados enfileirados naquilo depósito. Era um local branco, de luzes tubosas suspensas, que poderia ser chamado de laboratório, dando alguma latitude à linguagem. Frigorífico, porém, descreveria melhor a sensação do ambiente, se não suas características sensoriais mais óbvias.
Söderström chamou o infeliz diretamente à frente de Joaquim para análise minuciosa. Apontou um feixe de luz para um dos olhos do rapaz — claramente 20 anos mais jovem, mínimo, que Silva e Silva. Descansou o raio de iluminação por desconfortáveis minutos, enquanto o sujeito era admoestado a permanecer com os olhos abertos.
Söderström se voltou novamente para a prancheta. Pescou um dos lados de seu bigode e começou a tateá-lo com a ponta do indicador e polegar. Pelas contas de Joaquim SSS, era a sétima vez que aquilo acontecia no dia. O funcionamento do cacoete era tal: Söderström puxa uma das extremidades do bigode e a enrola cuidadosamente, até que o embaraço começa a se desfazer. Sobra uma ponta de pelo presa entre seus dedos que o cientista (?) puxa ao ponto máximo, como se fosse arrancar. Depois de segundos desse cabo de guerra, solta, sem jamais arrancar a pelugem. Frequentemente, recomeça o processo do lado contrário do rosto enquanto examina os dados escrevinhados.
Ao final da fila, alguém começava a fazer barulho. Uma perna saía da formação. Uma lâmpada vermelha começava a piscar acompanhada de um bipe repetido. Söderström ignorava.
* * *
Tudo começou com um refrão.
— O brasileiro precisa ser estudado!
Ninguém sabe qual o catalizador da reação. Talvez um brasileiro inusitadamente assando uma carne numa churrasqueira improvisada com os amigos numa rodovia engarrafada. Possivelmente, algum letreiro de lanchonete suburbana que fazia um trocadilho com uma marca famosa. Em algum ponto, um brasileiro preparou algo revoltante para comer e postou na internet. E assim, observadores repetiam o bordão, ad nauseam:
— O brasileiro precisa ser estudado!
Ocasionalmente remixado:
— O brasileiro precisa ser estudado pela NASA!
Afirmativa que, se inicialmente ignorada pela Administração Nacional da Aeronáutica e do Espaço, começou a causar perplexidade em cientistas e em engenheiros pela persistência. Será? Seria possível que um povo realmente precisasse ser estudado dessa maneira? Se a NASA nunca havia considerado um estudo daquela magnitude, era algo que paulatinamente entrava nos Corações e nas Mentes dos funcionários da autarquia.
— O brasileiro precisa ser estudado!
A recorrência dá corpo à palavra. A frase repetida ganha status de necessidade, empresta urgência ao chamado à ação.
— O brasileiro precisa ser estudado!
Ações tornam as crenças mais reais, palpáveis, delineáveis. Ao transformar crenças em atos, elas se materializam em dogma. O brasileiro começou a ser estudado.
* * *
Joaquim Silvério da Silva e Silva havia chegado (alguns diriam "chegara") à frente de Oscar Söderström. Instruído a permanecer parado, teve suas narinas medidas, suas orelhas puxadas, alongadas, perfuradas. Curiosamente, seu crânio não foi examinado — a frenologia é uma pseudociência. A certo ponto, Söderström prostrou-se para buscar uma bola de futebol, que arremessou à altura do peito de Joaquim. Aparentemente, um teste comum — os pesquisadores pareciam muito interessados em que situações estimulariam o brasileiro a estabelecer controle sobre a bola de futebol, fazendo embaixadas. Numa estação a 15 metros, o mesmo teste era feito onde, por reflexo, segurava a bola arremessada em sua direção com as mãos, para desapontamento claro do cientista encarregado.
SSS era mais safo. A face fechada de Söderström só se iluminava em certas situações e Joaquim sabia que (1) matar a bola no peito, (2) dar dois toques para cima com os pés, (3) equilibrar a bola na cabeça e (4) deixá-la escorrer para o chão seria um curso de ação que lhe compraria favor naquela situação lamentável.
Numa maca metálica a cerca de 40 metros, outro homem gritava, dissecado por um sujeito com um jaleco que trazia uma bandeira russa. O eslavismo da fisionomia do pesquisador se mostrava em toda a glória quando, ao abrir o peito do brasileiro estudado com um bisturi, ele sacava um baralho e jogava cartas sobre a mesa. Surpreendentemente, o brasileiro estudado não trazia nenhuma reação pitoresca.
A fila que culminava em Söderström continuava a se desorganizar na ponta final. A lâmpada piscante acelerava seu compasso e o bipe começava a ficar ensurdecedor. Söderström puxava o lado esquerdo de seu bigode. Acima, um letreiro preto trazia em letras formadas por círculos brancos que rolavam na horizontal: "O BRASILEIRO PRECISA SER ESTUDADO".
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A pressão pelo Estudo do Brasileiro surgiu, em carga memética, nos anos 10, mas visto que os germes de sua ascensão já existiam desde os anos 1960, era natural que o Novo Brasilianismo tivesse como ponto de partida o velho. A Comunidade Científica se voltou para os trabalhos de Kenneth Maxwell, Thomas Skidmore, Robert Levine. Encontrando pouco lastro para responder a questões prementes que ocupam a mente moderna, como o motivo pelo qual o brasileiro instalou um sistema de som excessivamente grande numa moto de 150 cilindradas, pesquisadores procuraram métodos mais diretos de exame da mente botocunda.
Apesar da pressão pelo envolvimento da NASA, quem se mostrou mais inicialmente receptivo a esse call to arms aos estudos brasileiros foram os europeus — provavelmente órfãos da mentalidade colonial exploratória tão cara ao imaginário do século 19. E, se no princípio choveram antropólogos, sociólogos e até economistas interessados no fenômeno brasileiro, logo as hard sciences se envolveram no imbróglio. Europeus de Oxford, Cambridge, EPFL, PSL enviaram emissários, que foram seguidos de chineses, de Tsinghua e Pequim, e demais países asiáticos, receosos de perder a próxima onda do futuro.
Em solo nacional, os brasileiros se viam mais que felizes com a atenção estrangeira encontrada, sempre tão almejada e por décadas além do alcance. Os pesquisadores, amigáveis nos primeiros meses, ficavam crescentemente confusos e irascíveis com a falta de respostas. O primeiro incidente que envolveu o uso da força se deu com pesquisador cingapuriano da Universidade Tecnológica de Nanyang, irritado sobremaneira por um brasileiro que não oferecia respostas satisfatórias para seu hábito de retirar o silenciador do escapamento de todas as motos Honda 125cc que já havia possuído. Chocante, o caso acabou com a morte do pesquisador, o brasileiro ferido, a moto em questão roubada por terceiros não relacionados que passavam pelo local no momento da altercação.
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Americanos mudaram a dinâmica. Relutantes em se envolver com um país que ativamente deseja ser invadido (em geral, preferindo a resistência ativa), os EUA se viam atrasados na corrida pelo estudo do brasileiro, com a promessa de bonança e conhecimentos mil. Não só foi difícil desenvolver o consenso político para o envio de pesquisadores, por muito tempo o povo americano relutava em enviar cientistas aeroespaciais ao país, incapazes de compreender uma demanda dessa natureza específica.
Com toda a pompa, os americanos estacionaram um porta-aviões na costa do Rio de Janeiro e enviaram suas tropas científicas para a terra. Um grupo de cinco, que foi o primeiro a pisar na praia, avistou um aglomerado de brasileiros. Um dos cariocas preparava linguiças numa grelha montada sobre o motor de seu carro com o capô aberto. Laura Grisham foi o nome da bióloga que ficou na história porque, ao ver aquela cena aterrorizante, sacou seu comunicador, um pequeno walkie-talkie e, informam múltiplos relatos, calmamente descreveu o que se passava e que uma tomada era justificada.
Não se passou meia hora e os coturnos pisavam no solo brasileiro. Militares americanos começaram a plantar placas no chão que traziam o ícone de um livro e uma caneta e eram acompanhadas da inscrição "O BRASILEIRO
PRECISA SER ESTUDADO". Itálico no original.
Voltaram-se para todos os presentes naquela praia carioca e começaram a detê-los. Os que tentaram fugir foram abatidos. Alguns continuaram a jogar altinho enquanto amigos e familiares eram mortos.
* * *
Depois do que se convencionou a chamar de Dia E (de Estudo), os governos de outros países perderam qualquer pudor e seguiram a invasão americana com suas ocupações. Recife foi sitiada por holandeses, realizando um antigo desejo dos locais de serem recolonizados pela prévia metrópole. Conta-se que os pesquisadores de Wageningen em particular, com seus extensos conhecimentos em meio ambiente e agricultura, fizeram diversos avanços nos campos da fertilização do solo utilizando materia orgânica retirada de corpos de brasileiros.
Franceses construíram feudos de estudos que se estendiam da Bahia até o Maranhão, centros de excelência que mantinham, a qualquer dado momento, milhares de brasileiros-cobaia. Ingleses não tiverem pudores em reposicionar as fazendas do Centro-Oeste, em que humanos brasileiros passaram a fazer as vezes de gado.
Chineses? Confortáveis com o novo arranjo, estabeleceram bases em Minas Gerais e no Espírito Santo, completas com toques de recolher, câmeras e pôsteres com frases de Xi Jinping que estimulavam a industriosidade no estudo aprofundado do brasileiro. Cogita-se que, em breve, expatriarão os uigures para o Brasil, combinando valiosas massas humanas para pesquisa biogenética.
Os Estados Unidos tomaram do Rio ao Sul do país e se tornaram overlordes ciumentos dos novos protetorados, sempre vigiados com drones, onde os locais passaram a andar com piscantes tornozeleiras para onde quer que fossem — para seus dormitórios, para os Centros de Triagem ou para os Núcleos de Observação do Brasileirismo.
Embora as operações americanas de controle, arregimentação, desmembramento, dissecação, biópsia e alteração genética de brasileiros por parte de americanos se concentrassem na seção sul do Brasil, evento tanto curioso é que estabeleceram base em Alcântara, próxima a São Luís do Maranhão. Lá, alocaram-se os pesquisadores da NASA, que buscaram fazer pesquisas tanto mais heterodoxas.
No Centro de Lançamento de Alcântara, tutelado inteiramente pela NASA, agora se lê: "Uma janela para os estudos do brasileiro no espaço". Próximos projetos envolvem catapultar múltiplos brasileiros em direção ao Sol.
* * *
Dr. Oscar Söderström em nenhum momento fez contato visual com Joaquim Silvério da Silva e Silva. Sua interação era perfeitamente profissional, guiada pelos perfeitos princípios da Pesquisa Científica. O método não admitiria poluição e o exame de Silva e Silva precisava ser minucioso. Sua estada no Núcleo de Observação já durava 44 dias; a cobaia se agarrava ao fato de que muitos deixavam o local depois de cerca de dois meses. Não se sabe para onde iam, se iam para qualquer lugar, e nunca houve promessas de qualquer um dos encarregados, mas era uma luz.
Söderström sacou uma serra elétrica portátil e a aproximou da perna direita de Joaquim, diretamente acima da artéria femoral, como se, numa só tacada pretendesse decepar seu membro mas, falhando, causaria a morte de qualquer maneira.
Os olhos de Joaquim se abriram, atônitos. Suas pupilas pareciam minúsculas. Num movimento só, levantou um de seus braços magros esponjosos e o balançou desajeitadamente para forçar Söderström a derrubar seu utensílio. Tendo desarmado o cientista, Joaquim fez algo próximo do que convencionaria chamar correr, but not quite, e procurava uma das portas.
A desordem no final da fila pareceu ebulir com o ataque de Joaquim. Inicialmente três pularam as grades de contenção, que organizavam as filas para os exames, nocautearam os dois guardas que policiavam o local e passaram a circular como baratas pelo laboratório. Sua empolgação contagiou os demais. Um dos guardas ainda conseguiu se recuperar e buscou conter aqueles atos de, pode-se definir, terrorismo. Agarrando-se a um dos objetos de teste, acabou cercado por outros brasileiros. No canto, alguns ensaiavam um grito de "Uh, vai morrer!".
Söderström calmamente se levantou e se dirigiu até o painel com a lâmpada que piscava. Apertou um botão que fez com que o bipe cessasse. Precisamente três segundos se passaram até que entrasse um time de cinco novos e mais bem equipados guardas, em trajes pretos em vez dos convencionais azuis, e capacetes com grandes olhos brancos que brilhavam. Cada um portava um rifle Ak 5C, praxe para as Forças Armadas da Suécia, que foram habilidosamente utilizados para abater todos os amotinados.
Joaquim Silvério da Silva e Silva havia sido o primeiro a chegar numa das portas do galpão laboratorial. Ele apertava a barra que servia como fechadura e se abriria para fora. Ao ver o primeiro raio da luz do dia passar pela fresta, ela passou a ser bloqueada pela figura de um capacete preto.
Joaquim não foi baleado. Primeiro, ele levou um chute frontal no tórax que o fez cair e provavelmente quebrou uma das suas numerosas costelas que pressionavam contra a pele. Depois, aí sim, foi baleado.
Antes de morrer, seus olhos reflexivamente pousaram sobre um letreiro preto de letras formadas por círculos brancos. O letreiro era defeituoso e piscava apenas o trecho "SA SER ESTU".
Das cerca de duas dúzias de brasileiros, vinte já haviam sido eliminados e os restantes submetidos pelos guardas. Söderström suspendeu novamente sua prancheta. Começou a tocá-la com a caneta. Toc-toc-toc. Ato contínuo, sem suspender os olhos do conteúdo daquelas folhas, falou numa voz anormalmente alta e esganiçada, que não parecia combinar com o formato da sua face: "O BRASILEIRO PRECISA SER ESTUDADO". A frase não se dirigia para ninguém em específico. O cientista russo, que não havia se movido de junto à maca com o corpo aberto durante toda a situação, franziu uma das sobrancelhas.
Söderström colocou a prancheta sobre uma mesa metálica e começou a puxar novamente o bigode pelo lado esquerdo do seu rosto. O embaraço dos fios se desfez precisamente quando ele terminou de preencher um dos campos da folha. Levantou, buscou sua caneca, que havia estado esquecida durante boa parte da manhã próxima a um dos computadores, e deixou o laboratório.
No formulário anexado à prancheta, no campo Distúrbios Mentais do Brasileiro, se lia:
✔ DRAPETOMANIA