17 de fevereiro de 2006

Sugestões

Os piores espíritos do mundo estão sempre a comentar sobre os mesmos livros. O que, claro, seria um vício natural, porque, afinal, estamos falando dos piores espíritos do mundo; mas o que me incomoda especialmente é o fato de quererem sempre que eu leia os tais livros, e que aprenda, que veja uma nova realidade dantes obscura aos meus olhos. Por exemplo, insistem para que eu leia "O Nome da Rosa". Não é uma insistência sincera, mas sim velada; todos os meus professores da faculdade, a certo momento, já comentaram sobre "O Nome da Rosa". Percebo em seus olhos a paixão que empregam na tarefa de me fazer ler esse livro. Mas professores são assim mesmo, e eu não os ouço, eles não sabem o que falam, por isso fizeram teses de mestrado. O que de fato é incômodo é a vontade de não-professores de que eu leia esse livro. E complementam, profundamente crentes de que eu correrei ardorosamente para as páginas do livro, dizendo que "esse livro mostra todos os podres da Igreja Católica durante a Idade Média, cara!". Uau, big news, hein, buddy? Perco até o sono só de pensar nos podres da Igreja Católica durante a Idade Média; como se ninguém soubesse que, já naquela época, a Igreja Católica promovia raves regadas a ecstasy e sexo bizarro. Duh!

Não quero, contudo, que pensem que tenho má vontade de ler livros que me são incansavelmente indicados. Hoje, por exemplo, depois de muita insistência de muitas pessoas, comecei a ler "Feliz Ano Velho". Estou certo de que o amável leitor conhece "Feliz Ano Velho". É aquela história do cara que ficou paralítico aos 20 anos - o tal Marcelo Rubens Paiva. O prefácio, escrito por um sujeito chamado Luis Travassos, já me fez arrepender-me de não ter lido o livro antes:

"Marcelo, cara, peguei teu texto para ler em um dia de tremendo baixo astral. Como sempre acontece comigo (desde que te conheço), recebi uma porrada de energia na boca do estômago e o moral subiu dos intestinos para a cabeça."
E prossegue, apaixonantemente:

"O teu livro está um barato, especialmente porque dá pra sentir um gozo aberto tipo poker descoberto. No fundo eu acho que a transa da literatura está ligada à transa da verdade (assim como a revolução, o amor e um montão de coisas). E é aí que está todo o pique do que você escreveu. A tua história está transada de um jeito putamente terno, bem-humorado, erótico e sedutor, o que, aliás, é a sua maneira de ser. (...)

"Tem uma firmeza no teu texto que espero que você mantenha: é um texto limpo de teorias e com um puta sentimento que expressa e defende suas idéias. Por exemplo, é deliciosa a maneira como na história há elementos críticos sobre as pessoas, comportamentos etc. sem nenhuma cagação de regras ou ironias baratas, mas com uma puta firmeza."
Segundo Marcelo Rubens Paiva, Luis Travassos foi presidente da UNE em 68 e tinha 36 anos quando escreveu esse prefácio, em 1981. Em virtude de seu vocabulário, Travassos foi perseguido pela ditadura e teve de se exilar em vários países. No entanto, creio que sua morte em 1982, aos 37 anos, tenha sido devida a um soco no estômago que, além do moral, levou outras estranhas substâncias à sua cabeça. O que mostra que tenho que ser mais aberto a sugestões literárias.

Nenhum comentário:

Postar um comentário